Tiago
não conhecia as pessoas como conhecia os papéis. Embrulhava, amassava,
cheirava, dormia e respirava papel. Trabalhava à noite em uma gráfica para
sustentar seus quatro filhos e sua esposa. Morava no bairro do Brás, próximo à
estação de trem e trabalhava nesta gráfica no distrito de Santo André.
Um
leão faminto, exatamente assim poderia ser descrito Tiago quando operava a
máquina de corte de papéis na gráfica. Sentia muita saudade da esposa e dos
filhos, principalmente até as duas horas da madrugada, horário da ceia em que
via Rita. Ah, Rita! Que arrocho de mulher! Uma morena lindíssima com olhos
amendoados, seios fartos e nádegas de fazer inveja a qualquer mulher.
É
preciso dizer que é com essa mulher que Tiago traía a sua esposa nas noites de
domingo, quando começava o seu turno. Também pudera depois que Olivia tivera
seu segundo filho, a rapariga não o procurava mais, de modo que era através
deste fato que costumava justificar à sua consciência seus atos voluptuosos.
Com a esposa, passava os finais de semana azedo como limão, mas domingo à noite
o sujeito era todo carinhos e elogios.
Tiago
não temia nada: violência, morte, fome, impostos, nada. A única coisa que o
atormentava era o medo danado que tinha de assombração. Não sei por que foi
meter aquela história na cabeça. Aquela que o sacristão lhe contou quando
menino. Foi na sexta-feira Santa na igreja São João Batista do Brás, quando
durante a missa o padre explicou que não teriam a hóstia consagrada, pois Jesus
estava ausente naquela noite - provavelmente não foi com essas palavras que o
disse - mas foi essa a interpretação de Tiago.
Naquela
noite, o menino não parou de rir durante a celebração, ele, que deveria ser
exemplo por ser coroinha. Ah, mas o padre olhou muito carrancudo para ele. Ao
fim da missa o padre o chamou ao confessionário e disse que as almas penadas e
assombrações ficavam à solta na sexta-feira Santa, e, portanto, aqueles que não
se comportavam poderiam ser atormentados por esses seres, a menos que se
arrependessem de coração dos seus pecados.
Naquela
mesma noite o pai de Tiago, seu Cristovão, sofreu um ataque cardíaco e quase
morreu. O pobre do menino associou o acontecido como punição por seus atos.
Desde então passou a ter medo de assombração e de escuro.
Sem
mais delongas, rumemos ao emblemático dia de finados daquela tarde paulistana
fria em que caía aquela típica garoa na terra dos bandeirantes. Tiago estava na
sala e assistia ao noticiário da TV; Olívia, como sempre cuidava dos filhos.
_
Preciso de dinheiro para comprar leite para o Alberto.
_Eu
deixo em cima do armário para você, querida.
_Agora
é querida, não é? Só me trata assim porque amanhã é Domingo. Você não gosta mais
de mim nem dos filhos.
_Não
fale assim, Olívia. Eu te amo. Eu largaria o emprego para ficar ao seu lado,
mas não dá. Aliás, eu vou sair e já volto.
_
Aonde você vai a essa hora, homem?
_Vou
trocar o dinheiro no boteco do Alemão, depois vou visitar meu amigo Felipe que
teve derrame semana passada. Às oito horas estou em casa com o leite do
Alberto, não demoro.
_ Quem
é esse Felipe que eu não conheço?
_
Quando eu chegar eu lhe explico, tudo bem?
É
claro que não havia Felipe nem tampouco derrame nenhum, mas para inventar
histórias nosso pilantra era perito.
Tiago
pegou os cento e cinqüenta reais que tinha na carteira e foi ao encontro de
Rita. A rapariga tinha cismado em ir ao circo na Praça da República, mas não
tinha os quarenta reais da entrada. Agora eles tinham: oitenta reais da
entrada, cinqüenta do motel, dez da pipoca e dez do leitinho sagrado de
Alberto. Tiago estava muito preocupado com o fato de ser descoberto por algum
conhecido, mas seu desejo era maior que a sensatez.
Sentou-se
na arquibancada próximo à Rita, porém sempre fingiam que não se conheciam.
Durante o espetáculo, Rita desatou a rir e não parava mais. Eram palhaços,
malabaristas, saltimbancos e animais de toda espécie, no entanto Tiago só tinha
dentro de si o desejo carnal e mal prestava atenção ao espetáculo. Queria
beijá-la, saboreá-la ali mesmo no palanque. Mas precisava ser paciente, em
breve o espetáculo acabaria, e deveras acabou após uma hora de apresentação e
um burburinho no final do show que nenhum expectador entendeu.
Toda a
platéia se dirigiu à rua. Já eram sete horas e Tiago tinha de agir rápido,
puxar sua presa e dar o bote e para isso tinha menos de uma hora. Estava
nervoso e sua mente estava confusa, ora pensava em Rita, ora no leite de
Alberto, ora em Olivia. Antes de a angústia terminar, aconteceu o inesperado,
Rita cochichou algo em seu ouvido e começou a gargalhar, fato que chamou
atenção de alguns transeuntes, inclusive de um senhor com cabelos brancos que
se aproximou dos amantes:
_Tiago?!
Como você cresceu, hein. Vejo que não perdeu o costume de rir.
_
Padre Antônio, sua benção!
_ Deus
te abençoe meu filho. Essa é sua esposa?
_ Não,
na verdade eu nem a conheço. Estávamos rindo, pois ela tropeçou em mim e disse
que parecíamos dois palhaços do espetáculo. A propósito senhor padre, o senhor
voltou à nossa paróquia?
Enquanto
os dois conversavam, Rita ficou de lado a esperar por uma conclusão daquele
falatório inútil.
_Não,
eu vim para a cidade para celebrar a missa de finados a convite de frei Gusmão
e aproveitei para vir ao circo, afinal eu também sou filho de Deus.
_ O
senhor está certo senhor padre, mas eu preciso pegar o ônibus agora e...
_ Você
não sabe que os ônibus entraram em greve essa tarde? Devemos pegar um taxi.
_
Vocês irão ao sentido do Brás? Posso ir com vocês? Falou pela primeira vez a
moça.
_
Vamos sim, aliás, é uma boa idéia dividirmos o taxi, pois ele será bem
disputado aqui, disse o padre.
Bem
desapontado e raivoso, Tiago acrescentou:
_
Obrigado pessoal, mas eu preciso ir agora, afinal eu preciso passar na casa de
um amigo que anda meio adoentado, sabe! Benção, seu padre e boa noite, menina.
O
padre partiu com Rita, que deu uma gargalhada após trocar algumas palavras com
o padre e Tiago saiu fulminando de raiva. Agora tinha de ir a pé até a estação
de metrô, uns cinco quilômetros de caminhada. Por que o diabo do padre tinha de
surgir justo hoje?!
Tomou
a Rua dos Timbiras à direita e seguiu em frente. Pensou em Rita e na frase que
ela cochichara em seu ouvido. Ela dissera que a noite prometia. Pensou na amante
e quando se deu conta estava caminhando sozinho na Avenida Senador Queirós, que
por azar estava sem luz, por isso tentou se conduzir pela lua. Lembrou do
padre. Maldito!
Deu-se
conta de que aquela era a noite de finados e lembrou-se de seu pai que falecera
há cinco anos, de ataque cardíaco. Voltou a pensar no padre, o mesmo que rogou
a praga para que seu pai morresse anos atrás.
O medo
não existe, uma vez que nós o criamos e somos muito bons nisso. Só sentimos
medo quando o alimentamos, e foi isso que Tiago começou a fazer.
Sozinho
na escuridão há dois quilômetros e meio da estação, começou a olhar para trás. Imaginou
ter ouvido uma risada, que não era humana, era bestial. Continuou a andar,
porém mais rápido e ouviu a risada novamente. Pensou em bater à porta de alguma
casa, mas relutou. Ouviu a risada que se aproximava e começou a correr, chegou
a pensar que poderia ser Rita a pregar-lhe uma peça, mas a risada era medonha
demais. As nuvens cobriram a lua impedindo a visão. Foi então que aconteceu.
O
pobre tropeçou em um saco de lixo preto e caiu ralando o braço na calçada e na
mesma hora bateu com a cabeça contra o poste e teve o supercílio esquerdo
aberto. Não havia carros, apenas o som estridente de uma sirene ao longe. Não
enxergava nada com o sangue a jorrar pela face. Mais uma vez a risada ecoou,
porém agora parecia uma orquestra de horror, não era apenas uma risada, mas
várias. O som penetrou no universo infinito de seu medo e o assustou ainda
mais. Tiago então percebeu que os risos não eram imaginários.
Levantou-se
do chão úmido e tomou coragem retumbando um grito de alerta, um sistema de
defesa desses que a natureza presenteia os animais quando acuados:
_Quem
está aí? Responda seu miserável! Eu não gosto dessas brincadeiras. Rita, se for
você eu te mato, vadia!
As
risadas ecoaram mais uma vez, no entanto vieram acompanhadas por três pares de
olhos que brilhavam na escuridão. Tiago arrepiou-se da cabeça aos pés e
persignou-se invocando todos os santos de cujos nomes se lembrava. Correu em
direção à agência de correios, tentando, de algum modo, escapar daquele horror,
mas agora com o olhar mais acostumado à escuridão pode ver: três hienas.
Hienas? Mas como umas pragas dessas poderiam estar ali? E eram três fêmeas
famintas. As sirenes soavam mais perto.
Tiago
pegou uma pedra e atirou nos bichos que recuaram alguns passos, fato que gerou
míseros três segundos para que ele tomasse uma decisão. Ele percebeu seu erro.
Ao correr à agência, sem querer se meteu no pátio do estacionamento e agora
estava acuado, só tinha uma opção e a escolheu: investiu sobre as bestas como
fazemos a um cão pequeno que nos ameaça morder. Mas hienas não são cães, hienas
atacam leões. Mais sirenes ao entorno.
Os três bichos incorporaram todas as assombrações de padre Antônio e investiram contra Tiago,
que por infelicidade tropeçou facilitando o bote. Uma delas meteu suas presas no pescoço da
vítima e as outras morderam os braços. Seu último pensamento foi Alberto, o coitadinho ficaria
sem o leitinho sagrado.
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