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Verdade

“O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são e das coisas que não são, enquanto não são”.

Protágoras

Bonifácio não era um nome tão comum, principalmente no início do século XXI, quando a moda eram nomes que figuravam na tela dos cinemas ou em novelas e séries de TV.

Pois bem, o fato é que Bonifácio era um homem casado e de meia idade com 40 anos. Silvia era a esposa de quem gostava e ao mesmo tempo desconfiava de adultério, principalmente depois que ela começou a terapia com aquele tal de doutor Ferraz.

Sua esposa tinha 38 anos de idade e há tempos sofria de certo colapso nervoso. Moravam na cidade de São Paulo. O clima seco do outono sul-americano sempre a afetava, pois era alérgica à poeira e sofria de asma. Mas, voltemos ao doutor Ferraz.

Bonifácio o via como um galã de cinema. Seus traços lembravam muito Richard Gere em seu Outono em Nova Iorque, mas o que mais o intrigava era o fato de Silvia estar mais feliz desde que começara o tratamento com o tal doutor. O que a fizera mudar? Estaria ela tendo um caso com esse psiquiatra?

Silvia andava menos submissa, se vestia melhor, se maquiava antes de sair e até comprou um perfume importado. Era isso que mais incomodava Bonifácio. Ele sentia que o tal doutor estava fazendo sua esposa se perder, se desvirtuar.

Precisava falar com esse calhorda.

Bonifácio conhecera Ferraz outro dia quando deixou a esposa na clínica, logo no início do tratamento. Desde este dia sentia-se culpado por ter negado fazer tantas coisas com a esposa. Não quisera ter filhos, porque dizia que eles atrapalhariam em seus planos e estudos. Fizera a esposa escolher entre uma oportunidade de emprego maravilhosa em uma multinacional e ele, simplesmente porque Silvia teria de trabalhar de uniforme, um vestido bem discreto. A pobre ingênua o escolhera.

Somente agora Bonifácio percebia o porquê de sua esposa ter ficado doente.  Era formada em contabilidade, falava inglês fluente e por fim acabou trabalhando em um mercadinho de bairro como atendente de caixa.

Ambos estavam com quarenta anos, no entanto, devido à ganância desmedida, Bonifácio parecia bem mais velho. Estava bem acima do peso, enquanto Silvia mantinha seu corpo esbelto. Parecia uma mulher de trinta anos, todavia passara alguns anos descuidada sem aquele asseio vaidoso de mulher. Logo, evitara maquiagem e jóias por um bom tempo até começar o tratamento com doutor Ferraz.

Bonifácio tomou a decisão na segunda-feira de manhã. Levou Silvia à clínica, mas desta vez entrou no estacionamento com o carro. A esposa o fitou surpresa. Ele esperou Silvia descer do carro, pegou as chaves e a acompanhou até a entrada da clínica. Doutor Ferraz estava no consultório em atendimento.

A recepção estava vazia exceto por Cláudia, a secretária. Havia algumas cadeiras, uma cesta com revistas para entreter os pacientes e uma escrivaninha grande de madeira de carvalho de onde a secretária os recebeu com um bom dia entusiástico. Silvia retribuiu com a mesma energia, mas Bonifácio apenas acenou com a cabeça e com a cara fechada.

Silvia estava sem jeito, pois não sabia o que o marido estava fazendo ali. Arriscou uma pergunta em tom sussurrante:

_ Não vai trabalhar hoje, Boni?

_ Não, hoje eu vou resolver uma coisa de uma vez por todas!

_ Boni, não vai fazer nenhum escândalo, porque...

_ Fique quieta! Mais tarde eu resolvo com você. Hoje a minha conversa é com esse doutorzinho.

Neste ínterim, enquanto estavam conversando, doutor Ferraz saiu do consultório com um paciente de quem se despediu. Vestia seu jaleco, calça jeans, sapatos pretos e blusa de lã. Podia-se sentir o odor adocicado de seu perfume a quilômetros de distância. De forma sutil e elegante o doutor disse:

_ Bom dia, dona Silvia. Como vai a senhora?

_ Tudo bem doutor.

_ Bom dia, Sr. Bonifácio. O senhor está bem? O doutor apertou a mão de Bonifácio bem forte e confiante, depois disse:

_ Vamos, Silvia? Você é a próxima.

No momento em que Silvia levantou-se para segui-lo, Bonifácio também o fez. No entanto, foi advertido:

_ Sr. Bonifácio, o senhor vem depois de dona Silvia. Eu já estava lhe esperando.

Bonifácio não teve reação e sentou-se obedecendo ao médico. Pegou uma revista e fingiu que estava lendo. Na verdade, estava persuadindo a si mesmo, pensando que seria melhor falar com o bastardo a sós.

Após cinqüenta minutos de espera entediante, Silvia saiu da sala sorrindo e doutor Ferraz ficou no local de onde o chamou:

_ Bonifácio, pode entrar!

Era um consultório convencional, com uma escrivaninha, uma estante de livros atrás da cadeira do médico e um armário repleto de fotos do psiquiatra e de sua família. Eram fotos de sua esposa e filhos. Bonifácio sentou-se e antes que pudesse falar qualquer coisa o médico lhe disse:

_ Já sei o porquê você está aqui. Em primeiro lugar, meu senhor eu sou muito bem casado e amo minha esposa e meus filhos. Embora seja um homem da ciência, sou cristão e respeito a minha fé. Preciso dizer algumas palavras, porque o senhor não é o primeiro marido a vir aqui com ciúmes. Ah, e antes que o senhor me pergunte como eu sei essas coisas ou queira negá-las, saiba que sou psiquiatra, psicanalista e hipnoterapeuta há vinte anos, de modo que eu conheço um homem pela esposa e vice-versa.

Bonifácio não teve reação a não ser ouvi-lo. O doutor continuou a falar:

_ Tolo daquele, que tendo visão enxerga a realidade através dos olhos de outras pessoas e tendo clareza se deixa levar por ideias alheias. É preciso ser juiz de sua própria vida. É preciso regê-la com sabedoria para que os efeitos colaterais tenham como causa seus próprios erros, não os de outros. Essa era a sua esposa antes de passar na consulta comigo, regida pelo senhor.

Bonifácio ouvia em transe.

_ As leis naturais não fazem acepção de pessoas, não escolhem credo, raça, língua ou qualquer outro tipo de intervenção sócio-cultural, de modo que, se um mendigo se jogar de uma ponte e o próprio papa o fizer, nenhum deles será arrebatado ao céu, pois a gravidade é imperativa e imparcial. No entanto, as leis humanas escritas em papéis, ou entalhadas em pedras servem, em sua maioria, para compensar a perda de alguns favorecendo a si mesmos e tirando a liberdade de outros, reduzindo-os a meros escravos. O ser humano se corrompeu de tal modo que é preciso ter uma lei que o proíba de tirar a vida de outro ser humano. Ora, não vemos leões criarem leis para obrigar as gazelas a servi-los.

_ Agora, senhor, escute com muita atenção. Esposa não implica servidão e sim liberdade. Ser esposa pode dar trabalho. Ser mulher implica ter atenção, carinho e troca de confidências amorosas com o parceiro. E ser marido, meu caro, ser homem de verdade é conquistar diariamente o amor da mulher por meio da química corporal e sensorial, por uso de palavras doces e ato de amor,  e não fazer usufruto do prazer sem o merecê-lo. Ser homem é ter autoconfiança e charme suficientes para atrair a mulher de modo natural.

_ Agora, que o senhor já sabe dessas coisas irá virar as costas e sair da minha sala e a partir de hoje vai tratar a sua esposa com dignidade. Na semana que vem, se o senhor sentir vontade pode voltar, só então eu lhe escutarei.

Bonifácio saiu da sala em estado de hipnose, agradeceu ao médico e começou um tratamento no mês seguinte.

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